Voraz: a sabedoria “da comida Michelin” no coração do mercado do Barreiro

Sonho de dois chefs com ADN da Margem Sul, o Voraz ocupa o coração do Mercado do Barreiro, valorizando os produtos da região e assumindo o desafio de derrubar o mito de a cozinha contemporânea ser acessível apenas aos gostos e bolsos mais privilegiados.

A faca afiada desliza sem esforço, retirando os excessos de gordura de um tenro corte de carne, em seguida salgado e temperado, antes de findar na fumegante panela. Daí, ouve-se o inconfundível som da comida a assar, um shhhhhhhhh! que abre o apetite, seguido do perfume das comidas, a incensar o ambiente que já mexe com o paladar do Barreiro.

O milagre das grandes gastronomias, em geral restrito ao intramuros das cozinhas, operado sem paredes e mistérios, diante dos olhos dos clientes, é apenas um dos ingredientes na receita do novo inquilino do Mercado do Barreiro: um restaurante de portas e coração abertos a quem não resiste ao prazer da mesa e se entrega sem pudores a um apetite… voraz.

A funcionar desde o início de abril, o restaurante Voraz é uma ousadia em todos os sentidos – inclusive no sentido do paladar -, ao fazer a cozinha contemporânea apanhar o barco de Lisboa rumo à Margem Sul, determinado a derreter o mito de a boa gastronomia restringir-se apenas aos gostos e bolsos mais privilegiados.

“Tive sempre essa ideia de desmistificar a cozinha contemporânea e
o Barreiro surgiu como uma grande oportunidade para provar que é possível encontrar comida estrela Michelin no meio do mercado, com a mesma simplicidade de quem vai ao talho”, explica o chef Tiago Santos.

Uma dupla de chefs com ADN da Margem Sul 

Aos 36 anos, Tiago sabe de “comida estrela Michelin”, expertise adquirida quando dividia a cozinha com um dos estrelados portugueses, Rui Silvestre, no antigo Quorum do Chiado. Experiência agora à disposição dos barreirenses, embora os primeiros meses já tenham dado sinais de que a freguesia se estende além dos limites do município. 

“Já servimos grupos de Cascais, turistas de Lisboa vindos de barco e jovens surfistas para recuperar as energias após encarar as ondas de Setúbal, todos atraídos pela curiosidade”, enumera Bruno Xavier Marques, o Xavi, 28 anos, o jovem sócio de Tiago no Voraz.

Tiago é um “fragateiro” da vila costeira de Sarilhos Pequenos, enquanto Xavi é um “montanhês” da Quinta do Anjo, ao pé de Palmela. Uma simbiose entre as vivências de homens do litoral e do campo ao serviço de uma ementa dinâmica, com a pretensão de renovar-se semana a semana, ao sabor das estações do ano. 

E de servir uma cozinha contemporânea 100 por cento made in Barreiro. 

As pérolas escondidas do Barreiro à mesa

Tiago é, antes de tudo, um entusiasta. Conhecedor dos meandros da boca, não só nas questões do paladar, mas também da retórica. E, com a mesma habilidade no manuseio da faca, o chef fatia as palavras para formular a receita por trás da cozinha e da ementa do Voraz.

“Não temos etiquetas aqui, de fazermos uma cozinha portuguesa ou
internacional. A proposta é criar uma comida a partir do zero, respeitando as épocas do ano, com foco no que a terra nos dá”, explica.

O respeito pelos desígnios da Terra vem dos ensinamentos aprendidos durante a graduação e mestrado em Geografia, antes destes desvios da vida levarem Tiago a outras geografias, primeiro na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril e, em seguida, nos Estados Unidos. 

“Mas o conceito permanece. A Geografia é uma disciplina holística,
também geopolítica, atenta à relação do homem com o território e as culturas, nessa cacofonia que gera o mundo”, explica o antigo geógrafo.

A geogastronomia do Voraz é posta em prática logo na construção da ementa, renovada semanalmente.

“Todas as terças, vamos às compras no mercado local no
Barreiro, o Mercado Levante. E, a partir do que encontramos lá, montamos o cardápio da semana”, conta o chef nascido em Sarilhos Pequenos, sem temer o grande sarilho em que se meteu ao propor uma ementa fluída.

Para ilustrar o processo, Tiago coloca sobre a mesa meia dúzia de laranjas de aspeto inusitado. “Laranjas-romãs. Raríssimas”, apresenta, mais uma vez recorrendo à lâmina para cindir a fruta ao meio. Só aí se percebe a verdadeira beleza da raridade, de estrutura interna em tons violáceos, mais próximo das romãs do que das laranjas. 

“Estavam a ser vendidas no mercado por um único vendedor, que nos explicou serem de uma árvore no terreno da casa dele. Saquei logo o canivete e abri uma. Fiquei louco com aquilo e comprei todas as laranjas-romãs do homem. A ementa inicialmente não previa nenhum prato à base de laranjas, mas fomos levados a improvisar”, conta.

Naquela semana, a laranja-romã do vendedor solitário uniu-se ao picles de maçã verde para o molho do Porco Baba Ganoush da ementa, que trazia ainda um promissor Arroz de Caldeirada, pontuado pelo peixe do dia com gel à base de pimentos e de plantas halófitas do vizinho rio Tejo. 

A obsessão – e talvez não haja palavra mais apropriada – em servir uma comida cem por cento made in Barreiro estende-se a outros itens da ementa, como o vinho produzido na península e os destilados, das aguardentes Vinica Velha e Bagaceira Nova ao moscatel Horácio Simões, passando pela vodka Brejinho da Costa e o licor de café.

“A comida contemporânea não tem que ver com o tipo de produto, mas com a atitude perante o produto”, ensina o geo-chef.

Garantir o sorriso das pessoas, sem anestesia

Xavi, o sócio de Tiago, também entende dos pormenores da boca e, novamente, não só das delícias do paladar. O jovem chef de 28 anos já esteve, aliás, do lado menos prazeroso: começou a vida profissional com espelhinhos e uma broca à mão, como dentista. Hoje, porém, garante o sorriso no rosto das pessoas de uma forma bem mais agradável – e sem anestesias.

E garante: não só o sorriso dos clientes.

“Estou muito feliz agora”, diz, abrindo ele mesmo um sorriso, o antigo dentista formado pela Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa. Bom aluno, carregava a esperança dos pais na Quinta do Anjo de ser o “médico da família”, mas a vida também tinha outros planos e lá foi o dentista para as salas de aula da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa.

Uma sala de aula também cruzou o caminho dos dois sócios.

“Uma grande amiga minha era aluna do Tiago na Escola de Técnica Profissional da Moita. Ela conhecia-me bastante bem e disse-me que havia um professor dela que eu tinha de conhecer. Segui o conselho e fui falar com o Tiago. Por sorte, consegui um estágio”, recorda.

“Sorte a minha, azar o teu”, brinca o sempre bem-humorado Tiago, atento à conversa.

O chef garante ter reconhecido logo o talento do antigo dentista à sua frente, mas mesmo assim, ou por causa disso, não fez a vida fácil ao estagiário. Durante três meses – três meses! – Xavi andou às voltas com a preparação de um arroz de coelho selvagem até receber a aprovação do então patrão.

Em defesa de Xavi, não era um arroz de coelho qualquer, mas novamente um prato preparado nos moldes da geogastronomia, respeitando os imperativos da região. Como se não bastasse, havia os pormenores, ou “pormaiores”, do métier, como a caramelização de ossos de coelho, a carne cozida a baixa temperatura e desfiada até ficar praticamente translúcida.

“Era um prato aparentemente muito simples para o cliente, mas que levava três horas para ser feito”, conta Xavi. “Havia sempre qualquer coisa que faltava, na consistência, no sal, até um dia experimentá-lo e ter a certeza de estar perfeito. Mostrei ao Tiago e disse isso mesmo: está perfeito”, recorda-se o chef. 

Como resposta, ouviu o antigo mestre, e hoje sócio, sentenciar:

“Está sim, pode servir!”

Nos bastidores desta cozinha do Barreiro

Esse rigor na busca pela elaboração perfeita de um prato não se traduz no humor da cozinha. A grande vantagem da arquitetura open space do Voraz é partilhar os bastidores do ofício dos chefs, como quem acompanha o pré-jogo no balneário da equipa do coração, enquanto espera a bola começar a rolar no relvado ou, no caso, o prato ser servido.

“Um dos pontos fortes de ir ao mercado é esse
contacto olhos nos olhos entre os comerciantes e os clientes. Decidimos manter essa característica no Voraz, com a cozinha aberta”, explica Tiago.

Para ter a certeza de o resultado final corresponder ao desejado, os dois chefs trocaram os utensílios de cozinha pelos da construção e colocaram as mãos na… argamassa. Durante três meses, Tiago e Xavi martelaram paredes, cortaram fios, aparafusaram armações de ferro, encaixaram aparelhos e fixaram os spots de luz até ao resultado final.

O Voraz ocupa três boxes do Mercado do Barreiro, num total de 40 metros quadrados de área. São 40 lugares, 12 deles no balcão com vista para a moderna cozinha, uma espécie de camarote com direito à companhia dos cozinheiros durante o ballet da preparação de um prato, bafejado pela brisa de comida em preparação.

Abrir o jogo dos segredos da cozinha não preocupa os chefs. Pelo contrário.

“As receitas serão partilhadas com os moradores do Barreiro. Todas
são anotadas pelos cozinheiros em cadernos para serem entregues à Câmara no final do ano, com o compromisso de publicá-las em livro”, conta o eterno professor, a segurar o bloco de notas de um dos “alunos”.

A ideia é, ao partilhar a preparação de receitas à base de ingredientes da terra, valorizar a produção e cultivo local, evitando que joias barreirenses como a laranja-romã desapareçam e a “extinção de produtos”, reforça Tiago.

Portanto, uma cozinha contemporânea e de utilidade pública, a valores possíveis, no coração do Mercado do Barreiro. Mais do que uma desculpa, a receita para mais uma viagem de barco pelo Tejo.

voraz cozinha de raíz

R. Eça de Queiroz

Mercado Municipal 1º De Maio

2830-344 Barreiro

Portugal

 

Horário: das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h; Sexta e sábado, até às 23h.

Encerramos domingo e segunda.

+351 961 838 253